Será mesmo que somos todas inadequadas?

Por Luciana Saddi

O sentimento de inadequação acaba por restringir e diminuir a circulação no espaço social.

As mulheres ainda são as maiores vítimas dessa estratégia de dominação-diminuição através da desvalorização de seus corpos, de um sentimento difuso de mal-estar produzido em nome da inadequação da imagem corporal aos padrões e ideais sociais.

Façamos uma viagem no tempo para chegar à relação entre a mulher e as recomendações dietéticas ou médicas que estiveram presentes no século XIX.

A mulher do século XIX é vista como uma eterna doente. A suposta fragilidade física das mulheres era argumento contra sua profissionalização, contra a exposição delas ao tumulto das ruas e à vida noturna, contra quase todos os esforços físicos, contra o abuso nos estudos, contra os excessos sexuais.

A medicina da época apresentava as etapas da vida feminina como uma sucessão de crises temíveis, independentemente de qualquer patologia. Além da gravidez e do parto, a puberdade e a menopausa eram consideradas “provações perigosas” e as menstruações, “feridas dos ovários que abalam o equilíbrio nervoso”.

Pela descrição acima podemos entender de que forma ocorreu (e ainda ocorre) o controle social sobre o corpo.

Se antes a mulher era uma eterna doente, hoje ela é uma eterna gorda e feia – independente de seu peso e medidas – revelando que o corpo não cabe mais no corpo. No mundo de hoje, o controle social sobre a mulher se utiliza da estratégia de equacionar feminino, jovem e magro.

Há um constrangimento social, um mal-estar para quem não se sente magro, lindo, saudável e jovemO controle social demoniza nossos corpos comuns, de homens e mulheres, e sobrepõe à antiga divisão de classes os critérios classificatórios baseados em preconceitos sobre beleza, saúde e moral. 

Em nossos consultórios e no cotidiano é raro encontrar quem não se sinta inferiorizado pela aparência, revelando inúmeras e frustradas dietas, cirurgias plásticas frequentes e tratamentos mágicos de rejuvenescimento.

Um verdadeiro ataque ao corpo parece estar em curso sob subterfúgios como saúde e beleza.

Os psicanalistas Fábio Herrmann e Marion Minerbo, no artigo “Creme e castigo”, publicado no livro Psicanálise fim de século (1998), mostram como os complexos morais migraram da sexualidade para a dieta, da cama para a cozinha e para a mesa.

Foto: Shutterstock.

O que antes se expressava em termos de moralidade sexual ressurge como moral dietética, conservando regras e normas características do discurso medieval sobre a sexualidade.  A forma de encarar o corpo também se altera diante dessa nova moral, o corpo humano passa a ser objeto de autocontemplação, está diante e não dentro de nós, revelando que o sujeito psíquico foi expulso do homem.

Parece que enxergamos o corpo da mesma maneira como vemos uma foto de propaganda. Observamos também uma progressiva semelhança entre o funcionamento do corpo e o da máquina: contamos calorias, controlamos inputs e outputs, calculamos massa magra, gorda, etc.

Esquecemos completamente que nosso corpo NÃO é máquina, nem imagem.

Veja aqui a entrevista com a Psicanalista e Escritora Luciana Saddi.

 

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Luciana Saddi
Psicanalista e Escritora, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica – PUC/SP.