Consciência alimentar, ódio e autoagressão.

Por Luciana Saddi

A relação com a comida sofreu enorme perturbação nas últimas décadas. Comemos, cada vez mais, de forma “externalizada” – comer se tornou um ato desconectado dos sinais de fome e saciedade, que deveriam regulá-lo. Comemos guiados por dietas, por indicações externas, visando alcançar um corpo idealizado.

Perdemos a capacidade de saborear os alimentos, de saber a hora de parar de comer, de saber quando se tem fome, de escolher os alimentos por livre e espontânea vontade e com prazer.

Deixamos de lado o saber próprio, de cada um de nós, adquirido ao longo da vida na experiência pessoal e diária que temos com o comer e com a comida. Substituímos esse saber por indicadores científicos ou pseudo científicos. Falo de um saber simples e intuitivo, um saber que vem sendo descuidado sobre quais comidas nos fazem bem, de quais não devemos abusar, em quais horários comer, como percebemos a fome em nós, por exemplo.

Passamos a sentir medo de comer, medo da comida e de suas consequências. Vai me engordar? Fará mal a minha saúde? Vou me descontrolar? Angústias contidas nessas perguntas acompanham nossa relação com os alimentos. A comida se tornou sinônimo de gordura e doença, o comer hoje é acompanhado de medo e angústia intensa.

O aumento do controle social sobre o comer e sobre o corpo está diretamente relacionado ao mal-estar que hoje atravessa a experiência com a alimentação e com o corpo. Esse fenômeno se chama mentalidade de dieta, e produz alienação e sofrimento.

A Mentalidade de Dieta nos faz acreditar que existe apenas um forma correta de comer – nunca é a nossa – que um tipo de corpo é belo, os outros devem ser remodelados e que há um saber maior que o nosso próprio sobre esses assuntos.

Tentamos nos enquadrar nos princípios ditados pela última dieta da moda, procuramos nos adaptar às condutas recomendadas pelos mais experientes médicos de regime e pretendemos adotar as dietas propagadas pelas revistas que buscam nos ajudar a alcançar as formas perfeitas, é verdade. E repetimos inúmeras vezes essas tentativas. Para a maioria das pessoas a dieta não funciona por muito tempo seguido, pois é difícil se submeter às privações e mudanças propostas.

Os estudos científicos dizem que boa parte das pessoas submetidas à dieta voltarão ao mesmo peso ou até engordarão mais. Para a maioria das pessoas, dietas são sinônimos de torturas, mas todos acreditam em sua necessidade e acreditam que a culpa pelo mal funcionamento das dietas é pessoal.

Somos nós que falhamos, que não temos o rigor suficiente. É grande a facilidade que temos em atribuir a dificuldade, a falta de êxito das dietas, aos seus praticantes, que não tem força de caráter suficiente para enfrentar o sacrifício. Curioso é perceber quão difícil é questionar o método das dietas, tão impregnado em nossa cultura, que não pode ser interrogado.

Mas, convenhamos, se o método fosse bom a humanidade teria emagrecido, no entanto, vem engordando e vem desenvolvendo cada vez mais distúrbios alimentares. Esses resultados ocorreriam por causa dos homens preguiçosos e incapazes de sacrifício ou porque a proposta é falha?

A mentalidade de dieta não promove questionamento às aparentes verdades cientificas sobre as comidas ou ditadas pela Moda e pela Indústria, mesmo quando percebemos que o método de dieta não funcionam por muito tempo ou não funcionam para boa parte das pessoas ou levam ao aumento de distúrbios alimentares. Verdades que se impuseram sobre a sociedade, avalizadas pelas ciências são difíceis de questionar.

Mas, será verdade que só existe uma forma possível de ser, somente um tipo de corpo pode é belo e todas as formas de comer estão erradas?

A mentalidade de dieta produz um estreitamento da realidade, pois gera um tipo de mentira que se repetida inúmeras vezes se transforma preconceitos! Pré-conceitos, ou seja, conceitos que surgem separados e anteriores à experiência com as comidas e com o corpo. Isso ocorre quando estamos sob domínio de informações adquiridas em processos de massificação e generalização de padrões. Processos alienantes em que a experiência singular, o saber individual, é descartado.

Diante de um bufê de comidas é frequente observar pessoas perturbadas com a escolha dos alimentos. Emitem as mais variadas opiniões sobre as comidas, falam de propriedades curativas dos peixes, dos perigos das gorduras e das relações promiscuas entre os açucares e as substâncias psicoativas, por exemplo.

Não sabem o que escolher, estão com medo, desejam algumas comidas, mas não podem, se envergonham, é possível que ao final desse embate angustiante se permitam comer apenas um punhado de alface.

Sentirão fome em casa? Conseguirão discernir sobre quais comidas desejam realmente comer quando a fome se apresentar? Terão episódios compulsivos em função das privações impostas pelas dietas?

Consciência alimentar é um movimento que vai na direção contrária a da mentalidade de dieta.

Visa resgatar os sinais de fome e saciedade, o prazer de comer, a escolha autônoma dos alimentos para cada momento de fome. Sensibilizar o paladar, se conectar com a própria digestão, escutar o corpo. Comer guiado pelos sinais internos, em profunda conexão consigo mesmo, diminui a perturbação do comer.

Conectar-se com as próprias emoções, com um vasto mundo interno que, em geral, não é percebido, significa realizar um trabalho em nome da autonomia pessoal, com as vantagens de reduzir os episódios de compulsão, aumentar o autoconhecimento e diminuir a insensata luta contra si mesmo, consequência direta dos processos de alienação aqui referidos.

É trabalhoso sair de um processo de alienação, é trabalhoso se conhecer, mas, é menos oneroso do que passar a vida lutando contra a balança, contra as formas corporais, contra o envelhecimento e sentir, sempre, o gosto da derrota.

Dietas frustradas, ganhos de peso excessivos, episódios de compulsão desagradáveis se acumulam na memória, se entranham na autoestima e imprimem uma marca de autodesvalorização e incompetência, por fim, levam a um círculo vicioso.

Há outras maneiras de lidar com esses problemas, maneiras que levam a maior harmonia consigo mesmo. São trabalhos que conduzem ao bem estar, por processar os diversos aspectos do mal-estar relacionado ao corpo, ao comer, aos ideais sociais e aos afetos. O trabalho de consciência alimentar integra diversos conhecimentos, muitos vindos da psicanálise, outros oriundos do mindfullness e de abordagens corporais.

Visa reestabelecer conexões e aliviar sintomas, percorrer o caminho de apropriar-se de si mesmo. É para quem passou a vida fazendo dieta e teve pouco resultado, para quem sofre com sintomas de transtornos alimentares, para quem procura novas formas de tratar antigos problemas e para quem, simplesmente, quer se conhecer mais.

Observamos em nossos grupos de consciência alimentar inúmeros males causados pela mentalidade de dieta.

Acreditamos que seja importante ressaltar uma de nossas mais intrigantes percepções, um sofrimento calado entre nós: o constante ódio voltado contra si e contra o próprio corpo. Ódio revestido de preocupações estéticas, de considerações sobre a saúde, e que não se deixa entrever facilmente. Ódio que se confunde com cuidados e se disfarça de amor.

Pequenas ou grandes atitudes agressivas contra si mesmo em função do fracasso em se conter, da impossibilidade de se disciplinar para obter o corpo idealizado. Paradoxalmente, quanto mais procuramos nos controlar, mais nos descontrolamos. Deste descontrole sobra um resíduo tóxico de ódio e de autoagressão. Precisamos conversar sobre os danos causados por esse tipo de sentimento. Entender quem ganha com isso e o que se perde com tudo isso.

0

Luciana Saddi
Psicanalista e Escritora, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica – PUC/SP.