Surdez Seletiva

Por Amanda Menezes Gallo

A pessoa chegou ao meu consultório, sentou e começou a falar. A princípio, conseguiu colocar em palavras pensamentos que estavam perturbando, e sentimentos intensos que tiravam a tranquilidade. Como psicóloga, exerci minha função, escutei, fiz alguns questionamentos, e fomos tentando conectar algumas partes da história. Eu diria que foi uma sessão produtiva.

Ela se foi.

Quando voltou, na sessão seguinte, algo me chamou a atenção: percebi que na sessão anterior eu a havia escutado, mas ela não SE escutou.

Sabe quando contamos com propriedade uma história de outra pessoa, uma história que não foi vivida por nós? Então, parece que foi assim que ela experienciou aquela sessão e refletiu sobre os próprios pensamentos e sentimentos – com propriedade, mas com distanciamento.

Muito se discute hoje em dia sobre o quanto as pessoas não estão mais sendo capazes de escutar umas às outras. De fato, isso precisa ser revisto, afinal vivemos em sociedade, e olhar/escutar/considerar o outro deve fazer parte do nosso convívio.

Mas, paralelo a isso, vai ficando evidente que o olhar e a escuta sobre si também estão sem espaço, também estão comprometidos.

Algumas vezes, pelo sentimento de incapacidade para suportar o que pode “vir à tona”, por exemplo, mas outras por falta de atenção, por não olhar ou escutar com cuidado o que se diz, o que se pensa/sente/faz. Um olhar “vendado” para a própria vida, uma escuta “surda” sobre a própria fala.

Pensando no dia a dia, talvez você se recorde de alguma vez que ouviu uma pessoa fazer (ou você mesmo tenha feito) um desabafo intenso, carregado de emoções, mas que logo após o relato parecia que nada havia sido dito, e, obviamente, a pessoa nada fez em relação à problemática. É como se o narrador da história tivesse despejado a sua dificuldade no ouvinte, que, por sua vez, pode até ter sido tocado e sensibilizado com a narrativa, se empenhando em ajudar, mas aos poucos foi percebendo que a demanda por ajuda não estava mais ali. E talvez nunca tenha estado. Talvez, aquele tenha sido apenas um ato “verborrágico”, uma fala “solta” e automatizada sobre uma demanda real, mas que ainda não foi propriamente escutada.

No caso da pessoa que chegou ao meu consultório, obviamente esse virou um tema para a terapia, e juntas fomos cuidando da “seletividade” dessa escuta. Mas, infelizmente, nem todas as pessoas vivenciam essa possibilidade, e aqui deixo uma sugestão: se você tentar se escutar, se enxergar e se perceber com a mesma atenção que eventualmente dedica aos personagens dos filmes/seriados prediletos, aos seus chefes ou aos seus filhos, por exemplo, poderá identificar demandas, desejos, pedidos que talvez já tenham até sido expressados, mas que nunca foram realmente escutados por você; pelo menos não com a atenção devida.

Se escutar é um exercício que pode e deve ser praticado diariamente, uma importante habilidade a ser aprimorada.

Quando se permite que a “mensagem” chegue à consciência, abrem-se possibilidades, e isso é maravilhoso. Se permita desfrutar dessa experiência com mais frequência.
Obs: Ressalto novamente que este texto refere-se apenas a casos em que a dificuldade está na desconexão entre a mensagem que é falada, e a que fica registrada na consciência de quem fala. Entretanto, além destas existem outras razões, não abordadas aqui, que podem ocasionar o mesmo resultado, ou seja, a “surdez seletiva”.

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Amanda Menezes Gallo
Psicóloga, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e Doutora em Distúrbios do Desenvolvimento.