Por uma vida mais ordinária.

Por Helena Cunha Di Ciero Mourão

Eu tenho verdadeiro horror a pessoas que se dizem realizadas. Essa gente que encontramos na rua com aquele sorriso plástico no rosto e que diz: “Estou realizada”. Mas que raio de história é essa?

Como é possível estar realizado e, ainda sim, estar vivo? Nutro também um certo desprezo pelas capas de revistas cujas manchetes anunciam: fulana de tal, realizada no amor e na carreira celebra a vida no mar, ou então, fulano de tal comemora mais um ano com plenitude e sabedoria, realizado.

Onde a gente acha isso na vida real? Assim, essa plenitude toda? Sim, pois até hoje o que tive foram momentos gostosos, mas também tive rotina, banco, contas, dores, desencontros e diversas chatices. E agora tem um tal de glúten que incha a barriga que devo evitar.

Realização no dicionário também tem a ver com finalização. E, enquanto estamos vivos, nada está assim tão sólido, tão seguro. Inevitavelmente, alguma coisa vai dar errado. Mas ninguém comenta. Acho isso assustador.

Já faz um tempo que a frase: “a vida é dura” caiu em desuso. Parece que na época das nossas avós havia uma certa resignação com relação às dificuldades com menos opções de “cura” das possíveis cicatrizes que a vida poderia deixar. Hoje, o que a gente vê, são as vastas tentativas de solucionar a dureza da vida. São remédios com a finalidade de atenuar a dor ou mascará-la.

Há uma necessidade absurda e quase violenta em acelerar o processo de cicatrização das feridas: “Toma um remedinho que a tristeza vai embora. E, em nossa pele, uma busca frenética por preenchimentos diversos para tentar anular a passagem do tempo, apagar as rugas que testemunharam meu amadurecimento. Nada pode ser revelado: envelhecer é sinal de fracasso.

Somos regidos pela urgência em aplacar as experiências que incomodam. Resolver, disfarçar.

Talvez, afim de voltar a ser mais rapidamente produtivo e prontamente voltar a alimentar a voracidade do sistema capitalista. Se produzo, logo estou adaptado, causo menos rupturas nesse mundo mascarado de gente que funciona. Será? Surge inevitavelmente, uma nova lacuna: a da negação. Tudo que foi difícil, que ficou marcado, pode e deve ser mandado para baixo do tapete. Rápido. Quem sabe assim, passa desapercebido. Quem sabe assim nem eu mesma lembro do que vivi. Qual será o preço que pagaremos por toda essa fuga? Ou seria essa covardia?

Hoje, a palavra da vez é pressa. Para tirar uma foto sorrindo: do prato que eu comi, do lugar que eu visitei, dos amigos que encontrei. Me parece que é preciso que alguém valide minha experiência agradável afim de comprovar que ela existiu. Se eu estava lá, nem sei. Mas tive 25 curtidas o que deve ser um sinal de que naquela hora eu fui feliz.

Acho que a felicidade não deve ser vista como um objetivo a ser alcançado, e sim, como um momento, que nunca é duradouro. É nesse peso todo que mora a encrenca, na minha opinião, na necessidade de garantir a durabilidade desse sentimento.Nessa eterna busca empobrecemos todo o resto do trajeto. Isso acaba sendo de uma tristeza absurda pois não é possível viver uma vida de verdade tendo sido só feliz. Não há uma escolha com relação às dificuldades. Elas se colocam, sem pedir licença.

Quando pudermos assumir com tranquilidade que nossa identidade é formada também pelas imperfeições, quando finalmente deixarmos de ficar reféns apenas do pensar positivo ou do sorriso artificial, ou quando lembrarmos que rir de tudo pode, sim, ser sinal de desespero …. talvez encontremos um verdadeiro alívio: O de ser quem sou, podendo não viver como uma atriz, em busca de aplausos ou curtidas.

Ser verdadeiro, ser genuíno, é sentir tudo que um coração vivo for capaz, em toda sua dimensão. Tanto o bom, quanto o ruim. Tudo isso nos enche de vivência, de experiência e principalmente: de coragem para saber que posso contar comigo para ir adiante. Acho que a questão vista de longe, pode até ficar confundida com um certo conformismo, mas, na verdade, falo de resignação como uma possibilidade de contemplação daquilo que passei ao longo do meu caminho. Contemplar é ver a figura como um todo. E a vida é dura mesmo, já diziam nossas avós.

É inútil pensar que dá para construir uma história sem tristeza, rugas, noites em claro e ressaca moral. Tudo isso somado cria uma experiência individual e singular. Viver se enchendo de lacunas é viver esburacado. E isso sim não tem nada de realizado.

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Helena Cunha Di Ciero Mourão
Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de SP, especialista em psicoterapia psicanalítica pela USP e colaboradora da Revista Amarello.