A comida não pode ser classificada em boa versus ruim, suja ou limpa, tóxica ou pura.

Por Marle Alvarenga

Embora obviamente a relação entre alimentação e saúde seja bem estreita, a falta de bom senso é a tônica da comunicação sobre os fatos, e muitas pessoas não têm sensitividade à dose e não saem da dicotomia na classificação dos alimentos. Muitas substâncias podem causar mal em grandes quantidades, o que não quer dizer que não possam ser ingeridas em nenhuma quantidade.

A comida não pode ser classificada em boa versus ruim, suja ou limpa, tóxica ou pura… Este tipo de linguagem causa pânico, neuroses e muita desinformação.

 

A ideia de pureza e outras crendices – e quase misticismo – relacionadas à alimentação remetem a crenças religiosas. Relatórios vindos do Annual Congress of the Humanities and Social Sciences Conference, que aconteceram no 1o semestre de 2015, discutiram como esta explosão de “comer limpo” tem criado uma hierarquia moral da comida.

Pesquisadores como Gillian McCann, professora de religião e cultura, apontam como é curioso que isto ocorra de maneira coincidente com o declínio da religião na sociedade, com as pessoas procurando valores familiares como pureza, ética e bondade. Ela afirma que isto pode ser inconsciente, mas é de certa forma motivado por “impulso religioso”. Só que tudo isto ocorre buscando um preenchimento que não pode ser alcançado com comida!

Se a pessoa se julga “pura”, os outros são impuros. A rigidez sobre o que se come leva ao julgamento do que os outros comem, e até sobre como eles são. Tal foco se relaciona também com virtudes pessoais, a ideia de disciplina e controle do corpo.

Gillian McCann afirma que parte do apelo do comer virtuoso é um senso de controle. Mais curioso é pensar que tudo isto remete ao controle do corpo, o que se relaciona aos transtornos alimentares, objeto de pesquisa e trabalho do Genta. As questões religiosas estão também na origem dos relatos de anorexia nervosa! Mas, em pleno século 21, com todo avanço da ciência, cá estamos nós de novo moralizando a comida, e complicando tudo com pseudociência, e “em nome da saúde”? O nutricionismo e ortorexia nervosa estão aí para nos provar isto.

Esta discussão também é feita por Alan Levinovitz, afirmando que a ciência é apenas a superfície da discussão, mas cheia de mitos e superstições pra reforçar um discurso do bem contra o mal numa ilusão de bem estar.

Sim, o ambiente alimentar é muito mais complexo hoje, vale conhecer mais sobre a comida, porque nos distanciamos dela – o que contribui para gerar medo e dúvida. Mas não há uma dieta milagrosa, assim como não há a dieta que “intoxica”. Nutrição não é religião e os valores morais não podem reger o que é ciência.

A comida deve ser pensada sempre no contexto da alimentação como um todo, incluindo aí seus significados sociais, cultuais e emocionais, além dos fisiológicos. Por isto defendemos a boa relação com a comida, e o papel do prazer neste debate. De neuroses o mundo já está cheio…

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Referências:

1)       Rozin P, Ashmore M, Markwith M. Lay American conceptions of nutrition: dose insensitivity, categorical thinking, contagion, and the monotonic mind. Health Psychol.1996;15:438-47.

2)       http://news.nationalpost.com/life/food-drink/the-new-religion-how-the-emphasis-on-clean-eating-has-created-a-moral-hierarchy-for-food

3)       Weinberg C, Cordás TA. Do altar as passarelas ? da anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.

4)       http://www.npr.org/sections/thesalt/2015/06/11/412973926/how-diet-gurus-hook-us-with-religion-veiled-in-science

5)       Nitzke S, Freeland-Graves J. American Dietetic Association. Position of the American Dietetic Association: total diet approach to communicating food and nutrition information. J Am Diet Assoc. 2007;107:100-8.

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Marle Alvarenga
Nutricionista e professora, pós-doutora em Nutrição pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Coord. do GENTA - Grupo Especializado em Nutrição, Transtornos Alimentares e Obesidade e Idealizadora do Centro Nutrição Comportamental.