NÃO COMERÁS!

Por Cybelle Weinberg

O 11O. MANDAMENTO: NÃO COMERÁS!       

Como afirma a historiadora Mary Del Priore, vivemos em uma sociedade lipofóbica, que odeia a gordura e os corpos gordos. Bombardeados por centenas de dietas que prometem um corpo enxuto, nunca o pecado da gula foi tão grave como hoje.

No entanto, a magreza e a abstinência alimentar, tão valorizadas em nossos dias, têm uma longa história na vida da humanidade. O jejum como prática religiosa era comum entre alguns povos da Antiguidade e, com o advento do Cristianismo, adquiriu um caráter de mortificação e modo de alcançar as delícias do Paraíso.

Desde a época mais remota do cristianismo, o jejum autoimposto, tal como a castidade, foi recomendado como meio de salvação.

Tertuliano, no início do século III, defendendo os jejuns prolongados – que dariam à alma uma visão clara -, afirmava que “um corpo emagrecido passará mais facilmente no portão do paraíso, um corpo leve ressuscitará mais rapidamente e na sepultura será melhor preservado.”             

Lembra da expressão “Comer como um vigário”? Leandro Karnal em seu livro Pecar e perdoar  (2014), nos lembra que:
“Frades e freiras eram e são famosos pela boa cozinha. Mosteiros vendem compotas e pães com amêndoas até hoje. A imagem de um frade gordo e bom de copo acompanha o Cristianismo há muito tempo. (…) Comer como um vigário era expressão antiga para quem acompanhava o rito da mesa com uma satisfação enorme. E, em todos esses conventos onde as cozinhas não cessavam de produzir iguarias, imagens piedosas de santos magros e marcados pelo jejum adornavam as paredes.” (p. 230 ) “ … mosteiros e conventos se tornaram centros culinários. Licores famosos, doces refinados, cervejas especiais e quitutes variados estavam, indelevelmente, associados a essas instituições religiosas.” (p. 224)

Se santos que ficaram famosos pelo jejum prolongado e pela abstinência alimentar deram nomes a iguarias tão maravilhosas, e se lugares destinados ao afastamento dos prazeres e tentações mundanas se sobressaíram pela produção de tantas delícias, como entender esse paradoxo em relação à comida

Sem dúvida, a cena de um mosteiro adornado por imagens de santos cadavéricos, de cujas cozinhas exalava o cheiro do pão quente, do açúcar queimado e o perfume dos licores, nos remete às bancas de jornal de hoje em que, lado a lado, são exibidas revistas com capas de mulheres magérrimas que recomendam mil e uma dietas restritivas, ao lado de atraentes capas de revistas de gastronomia que, literalmente, nos tentam como os demônios de Santo Antão!

Ou como aqueles que tentavam Santa Maria Madalena de Pazzi (1566 – 1607), grande jejuadora, abrindo gavetas e prateleiras quando ela passava pela despensa, exibindo seus “tesouros culinários” e seduzindo-a para interromper sua dieta de água e pão.

Diante de imagens tão apelativas e contraditórias, como nos manter no espaço da moderação?  De quanto esforço precisamos para a prática desta virtude, tão cara entre os gregos antigos?  Como não cair no excesso, tanto de um lado como do outro?

Tal como padres e freiras medievais lendo textos bíblicos durante as refeições para desviar a atenção do prazer da comida, nos vemos hoje lendo rótulos e contando calorias entre as gôndolas dos supermercados. E devolvendo para as prateleiras os mais saborosos, afastando com um vade retro Satanas as mais deliciosas tentações!

*Ver texto completo, com citações e bibliografia, no site da CEPPAN (www.redeceppan.com.br) e também em Weinberg, C. e Berlinck, M.T. O jejum sagrado e o jejum anoréxico: maneiras radicais de lidar com as demandas do corpo. Trivium, Dez.2015, vol. 7, n. 2, p. 255-268.

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Cybelle Weinberg
Psicanalista, Doutora em Psicologia Clinica e coordenadora da Ceppan, Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia Bulimia.